domingo, 16 de dezembro de 2007

O rio que nos divide

Com a greve de fome pelo São Francisco, d. Luiz personifica dois conflitos: um com o Estado, outro na Igreja


José de Souza Martins*


A greve de fome de dom Luiz Cappio, bispo de Barra, na Bahia, contra a transposição das águas do Rio São Francisco e em favor de sua despoluição e revitalização não decanta as águas do rio, mas decanta a política. Desoculta irracionalidades e dá visibilidade, ainda que pálida, a sujeitos ativos e marginalizados do processo político brasileiro.

Com sua decisão radical, o bispo personifica dois graves conflitos, bem distintos entre si. O primeiro conflito é no interior da Igreja. Apesar de definir seu gesto pelo eufemismo de momento de jejum e oração, tecnicamente é uma opção pelo suicídio, caso não seja atendido. Sem dúvida, a opção do bispo pelo martírio torna politicamente correta até a mais incorreta das causas, que neste caso pode ser correta quanto ao tema político, mas não o é quanto ao método pré-político.

Ao dar seguimento ao projeto depois de sua primeira greve de fome, alega o bispo, Lula e o governo o teriam traído, descumprindo o acordo que com ele fizeram. Essa suposta traição envolve o segundo grave conflito aberto por essa greve de fome. Lula é o chefe de Estado. Ele não governa em nome próprio, mas em nome da lei. Não pode ser desafiado na legalidade do seu mandato. Já o bispo não tem representação política. É o seu carisma que lhe diz que o povo está mal representado pelos políticos e pelos governantes. Os clamores do povo não estariam se traduzindo em atos políticos que tivessem como motivo e objetivo o bem comum. A violência contra o rio seria disso expressão porque violência contra o que o rio representa para as populações ribeirinhas. A disputa pelo rio é uma disputa entre a água da terra de trabalho e a água da terra de negócio, entre o rio do povo e o rio mercadoria.

O presidente da República foi visitado nessa semana pelo presidente e pelo secretário da CNBB, engenheiro de formação, para tratar do caso. Deixou claro aos bispos que está disposto a examinar alternativas, mas essa disposição não implica “abandonar inteiramente o projeto de transposição do Rio São Francisco”. De certo modo derrotada em sua sensata intermediação, a CNBB dirigiu apelo não só aos católicos, mas aos cristãos, para que apóiem o bispo com orações e jejuns. Onde faltou a política entrou a religião e nesse modo de fazer política Lula ganha na formalidade do chefe de Estado, mas perde como governante e político.

Recente artigo do bispo é esclarecedor documento sobre a mentalidade que preside o gesto da greve de fome e a ideologia que aglutina apoios religiosos e políticos pautados pela mesma lógica. Temos nele o reconhecimento de que vivemos num sistema político dual, o do voto formal, de um lado, e o da pressão moral, de outro, duas formas combinadas e antagônicas de participação política nesta sociedade bifronte. O déficit de democracia do poder formal e legal é, por isso, preenchido por essa espécie de poder popular de que a greve de fome é um dos instrumentos. O detalhe de que, após o final da greve anterior, tenha o bispo se confessado amigo de Lula e simpatizante do PT, significa nada menos que seu carisma de algum modo contribuiu para que votos assegurassem que o corrupto poder formal, como ele o retrata em prolixa qualificação, chegasse às mãos do PT e nelas permanecesse. A estratégia da pressão moral, como afirmação de um poder popular paralelo, do legítimo contra o legal, já era prática dos católicos petistas, desde a fundação do partido e eu diria desde antes, desde os primeiros movimentos sociais dessa inspiração, sobretudo nos apoiados pelas pastorais sociais. O abismo que separa o povo do poder e a representação política em boa parte ficcional em que se apóia o Estado brasileiro responde por essa outra ficção criativa e inventiva, mas ineficaz, da sociedade alternativa e do Estado paralelo. Do fundo do lago de Canudos, o profeta Antônio Conselheiro nos governa em silêncio.

A greve de fome do bispo faz do São Francisco um rio sacramental. É, na prática, uma forma extrema e primitiva de dizer que os partidos políticos, sem exceção, se anularam como canais de expressão da vontade popular. Em seu lugar, afirma o gesto do bispo o mandato dos grupos de mediação política que atuam de maneira pré-política na gestação e afirmação da cultura do abismo entre a política como representação e a política como militância cotidiana da ação direta. Vai se constituindo entre nós uma realidade política apoiada na existência de dois parlamentos, o de Brasília e o das ruas. Tendo assumido no início esse bifrontismo como base de seu governo para impor aos grupos populares que o elegeram as razões de Estado, Lula acabou afastando do Estado, ou perdendo na onda das denúncias de corrupção e do mensalão, os organicamente mais ligados à Pastoral da Terra, de que o bispo é emblemático representante.

Nesse distanciamento, o PT perde sua alma católica. Eventual conseqüência dele, a morte do bispo poderá representar sério risco político para o governo e seu partido, como se lê em artigo do frei Pilato Pereira, da Pastoral da Terra: “Os setores de esquerda das igrejas cristãs e os movimentos sociais e populares não mais apoiarão o Lula e o PT...” Mas esses setores também correm sério risco perante a Igreja. Dificilmente convencerão os bispos de que não fizeram do carisma do bispo instrumento de sua militância, em vez de dissuadi-lo em favor de uma tática judicial e política. Os riscos do PT e de Lula, porém, não são tão grandes assim. As pastorais sociais e os que na Igreja se engajaram na militância partidária não desenvolveram uma pedagogia política democrática, voltada para o reconhecimento da democracia na pluralidade dos partidos e no voto como expressão da livre vontade individual. Não deixaram para seus militantes senão a alternativa do único, o PT. Quer queiram quer não queiram, não só dependem das bênçãos do bispo como dependem, também, dos favores do Estado. Sua ambigüidade não democratiza a política nem emancipa a sociedade. Esse é o rio que nos divide.

*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

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